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Poder simbólico, habitus e campo jornalístico

O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) tornou-se conhecido mundialmente não apenas por ser um dos principais jogadores da equipe de rugby da Escola Normal Superior de Paris, mas também por produzir uma obra que forneceu material teórico para diversas áreas, como comunicação, artes plásticas, filosofia, antropologia e linguística.

No livro O Poder simbólico (1989), ele sintetiza os conceitos e contextualiza a gênese de termos fundamentais para o entendimento de sua obra, como campo e habitus.

O autor define a noção de campo como um espaço social que possui regras próprias de organização e hierarquia social, caracterizado por dominação e conflitos. Essa dominação, ou poder, é trabalhada por ele principalmente nos casos em que está “quase invisível” e é “exercida com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. É o que Bourdieu chama de ‘poder simbólico’. O sociólogo cita o processo de transformação do mito em religião (ideologias), e explica que são essas ideologias que legitimam essa forma de dominação ‘irreconhecível’, ‘transfigurada’ e ‘quase mágica’.

Violência simbólica é outro termo importante da obra do autor e que é introduzida no mesmo texto. Ela se caracteriza como uma forma de coerção baseada em um conjunto de instrumentos estruturados e estruturantes de informação e conhecimento que induzem os indivíduos a se posicionarem segundo os padrões do discurso dominante. Ela é exercida, em parte, com o conhecimento da vítima, que a compreende como ‘natural’.

Nesse mesmo contexto, é preciso compreender as diferenças básicas entre as duas formas de análise dos sistemas simbólicos: como estruturas estruturantes (tradição neo-kantiana), ou como estruturas estruturadas (tradição estruturalista). No primeiro caso, é levado em conta o aspecto ativo do conhecimento – o indivíduo utiliza-se das estruturas para a construção da realidade (modus operandi). No segundo, a análise “tem em vista isolar a estrutura imanente a cada produção simbólica” (opus operatun). Ou seja, os indivíduos não são tratados como agentes construtores da realidade, porque agiriam apenas a partir de estruturas pré-determinadas.

No capítulo III, quando desenvolve o conceito de habitus, Pierre Bourdieu rompe com a visão estruturalista¹ a partir da qual pode ser entendida a definição de campo. Baseado na noção aristotélica de hexis, o habitus fundamenta-se no conhecimento adquirido pelos agentes sobre o campo, que os leva a formular estratégias para ascender na hierarquia social. Enfim, a ideia de habitus admite que os indivíduos ‘jogam o jogo’ conforme estruturas pré-determinadas, mas dá abertura para a ação racional, ou o pensamento estratégico dos agentes.

Dentro de cada campo, existem relações de poder, e a distinção entre os indivíduos dá-se pelo capital. Ao sistematizar uma definição própria de ‘capital’ – capacidade de atuação em determinado campo -, Bourdieu amplia a visão marxista e passa a considerar três categorias: econômico, social e cultural (simbólico).

Oito anos depois de publicar O Poder Simbólico, o autor escreve A influência do jornalismo e demonstra como o campo jornalístico, completamente dominado por pressões externas – necessidades da audiência, busca obsessiva pelo furo e obediência a padrões condicionados pelo mercado de anunciantes e leitores -, redefine e modifica as relações de força nos demais campos.

Provavelmente, a principal contribuição do texto está ligada ao que o autor chama de “efeito de intrusão”, ou seja, as influências produzidas pelo jornalismo sobre os outros campos, que faz com que estes percam parte de sua autonomia. Nessa lógica, os campos científico e literário seriam os mais influenciados pelo campo jornalístico, porque possuem menor capital específico².

No final do texto, Pierre Bourdieu propõe, em um parágrafo, um programa de ação entre os jornalistas e os representantes dos demais campos como a única forma de ‘libertação’:

Desvelar as restrições ocultas impostas aos jornalistas e que eles impõem por sua vez sobre todos os produtores culturais – será preciso dizê-lo? – denunciar responsáveis, apontar culpados. É tentar oferecer a uns e outros uma possibilidade de se libertar, pela tomada de consciência, da influência desses mecanismos e propor, talvez, o programa de uma ação combinada entre os artistas, os escritores, os cientistas e os jornalistas, detentores do (quase) monopólio dos instrumentos de difusão. Somente tal colaboração permitiria trabalhar eficazmente na divulgação das contribuições mais universais de pesquisa e também, em parte, na universalização prática das condições de acesso ao universal” (p. 117).³

¹: o pensamento de Bourdieu – que ora criticava o estruturalismo e o individualismo, ora aproximava-se de um deles – passou a ser chamado de construtivismo estruturalista, ou estruturalismo construtivista.

²: pode ser entendido como o fundamento de dominação ou autoridade específica de um campo; um capital que possui validade somente dentro dos limites internos de um determinado campo.

³: optei reproduzir esse post-scriptum integralmente para que ele possa funcionar, inclusive, como um ponto de partida para os comentários do blog, visto que não houve tempo suficiente para a discussão desse texto em sala de aula).

Daniel Giovanaz